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quinta-feira, 1 de maio de 2014

[FEITO A MÃO] Nephesh

Somos todos parte de uma animação de um quintal.


Foto: Lucie Fernandes

 E tudo é o quintal.
~x~

FEITO A MÃO:
NEPHESH



Foto: Lucie Fernandes
Lembro as vezes em que eu me embrulhava em lençóis e sobre naquele tempo minha cama ter alguns bichinhos de pelúcia sempre próximos de mim. Não possuía certeza do porquê fazer isso. Talvez eu só não me lembre agora das razões, mas minhas lembranças indicavam um medo que não tinha um começo certo e tampouco um fim claro. Era como se um sopro de repente escorresse pelo meu ombro para isto então fazer sensações no meu ouvido que seriam o suficiente para eu virar minha cabeça para os lados com o objetivo de localizar uma segunda presença. De assegurar que eu poderia explicar a intuição de não estar sozinha no meu quarto. De assegurar não estar sozinha com os animais de algodão e tecido. De me assegurar sobre não estar sozinha no meio do meu pequeno espaço obscuro com a exceção de uma fraca luz detrás da cama. E de contradizer a minha impressão de pequenas vozes espocarem do nada. Como se elas ficassem o dia inteiro escondidas nas gavetas da cozinha e dos closets de meus pais, como se elas me observassem até chegar aquela hora da noite.
Era todo dia, naquela mesma hora em que a lua já se instalava no céu: quando eu ouvia uns insetos do cemitério na frente de casa ficarem em sua pequena sinfonia por algumas horas e no instante em que o desenho começava a aparecer na tevê, por mais que meus pais se certificassem de desligar uma hora antes. Eu não possuía o costume de pegar na tomada depois que faziam isso, já que eu não tinha o hábito de ligar a televisão ou de admirar bastante as múltiplas cores ou seus constantes sons.
Talvez por isso, exceto nas ocasiões em que meus pais ligavam a rádio em dias de chuva para ouvirmos as notícias que geralmente envolviam a descoberta de uma nova mutação nos animais de rua, os objetos não identificados que aterrissavam pelos altos da cidadezinha, desaparecimento de árvores e o aparecimento de pessoas que simplesmente surgiam nas ruas....
File:Poppy2004.JPG
Créditos: John Beniston (2002, Wikipédia)
Talvez por isso a gente, nós três, ficávamos em paz. "Do que devemos ter medo quando estamos perto do medo de tanta gente...", meu pai, passando o creme de alho com manteiga no pão de um café da manhã, disse para eu e mamãe quando alguns de seus amigos começaram uma série de piadas sobre assombrações. O cemitério possuía uns poucos séculos de idade. Era gigante, extenso e ali era a região em que menos tinha possibilidade de violência. Gerações de muitas famílias estavam a metros debaixo da terra, o que causava o sentimento coletivo de respeito pela história e lembranças que as lápides causavam às mentes da população. No entanto, a área também invocava uma espécie de dever, uma imposição feita por alguns, de que todo mundo deveria ter medo de brincar ou até se relacionar em ficar muito tempo por lá. Proibido ficar por aqui (ou por lá, como não moro exatamente no cemitério) em determinado horário da noite.
Não sei quantas vezes tentei contar o número de pessoas que de vez em quando inventava uma história. Também não saberia contar quantas vezes me puxaram para contar alguma aventura que eu possa ter ter tido no lugar. "Bom", uma colega minha me disse, quando perguntei o porquê uma vez, "você é a garota do cemitério", ela me contou em um tom que entendi como curiosidade, quase como um suspiro afável. As pessoas não tinham medo de mim, essa questão foi algo que evidenciei ao pensar um pouco e fazer algumas experiências como tocar na mão de alguns de meus amigos. As pessoas tinham medo de minha casa. Desde que minha família se mudou para a cidade, meu pai já tendo um processo de contratar pessoas para poderem ajudar a construir a casa na frente do cemitério (ou seria atrás?), meus colegas e seus pais evitavam ir para minha casa. No máximo, telefonemas.
De amigos, apenas mantive dois ou três, e todos eram incomuns: eu estranhava que um deles nunca tivesse seu nome na chamada da classe, o outro fosse obcecado em ter uma garrafa de água por perto e uma outra que falasse sozinha com as plantas do jardim do colégio. Com o tempo, acabei ganhando pessoas que não gostavam muito de mim também. Desde que eu me tornei uma menina entre seus doze e dezesseis anos, era comum um grupo de garotos soar comigo em um terço do caminho e, convivendo com os quatro, descobri que não era bem por eu ser "a garota do cemitério", mas sim por eles não terem realmente alguma razão para marcarem uma pessoa...
...Ou provavelmente eles tinham.
"Você vai ousar a abrir essa sua boca agora, vai, bobona?", foi o que ouvi um deles falar perto do meu ouvido quando notei que meu diário havia sumido após eu notar que outro deles mantinha um objeto suspeito no estojo, durante uma prova de Matemática. A pessoa que falara isso era um filho de alguém de boa condição financeira. Provavelmente um empresário. Ao contrário do que se acredita no senso comum quando você começa a imaginar o perfil de um bully, ele aparentemente era o melhor aluno da turma e o pai quase literalmente babava por causa disso, exceto se você considerar comportamento. Ele não tinha sido o menino que flagrei copiando, mas, segundo boatos, os quatro eram próximos desde o maternal...
E quando ele disse aquilo, o sorriso indicava que eles poderiam ter argumentos o suficiente para acabar com minha confiança. 
Foto: Lucie Fernandes
Era meu diário. Eu mantinha segredos. Eu falava de todos. Eu falava de tudo. De quem eu gostava, de quem eu desgostava, das minhas pequenas descobertas em um cantinho especial do jardim, as pessoas que de vez em quando encontrava no cemitério ao passar por lá por ser meu caminho de casa para a escola, de situações desconfortáveis, de instâncias de raiva, de momentos em que eu me sentia vulnerável... Das vezes em que eu, em determinados dias do mês, ouvia uma canção, corria para a porta, corria escondida pelo jardim e via ninguém... Das vezes em que eu era salva de alguma pessoa má intencionada por alguma pessoa, no ônibus ou na rua, que tendia a desaparecer assim que pensava em uma forma de dizer 'obrigada'... Das vezes em que, quando eu tinha febre quando mais nova, eu dormia no quarto e sentia uma impressão de uma mão delicada afagar minha cabeça enquanto minha temperatura se tornava normal em um tipo esquisito de 'milagre' (por mais que meus pais dissessem que não iam ao meu quarto).
Mal me toquei que a raiva já estava nas alturas na minha mente no momento em que o vi dar as costas e ir a uma direção oposta com uma expressão triunfante. Fiquei em uma silenciosa fúria nos tempos seguintes daquela tarde. Estava tão focada nisso, rabiscando nos meus cadernos e tentando me concentrar nas aulas, que mal notei a ausência de um de meus amigos. Não me arrisquei a perguntar dos professores, pois sabia o que iam dizer "Não existe ninguém chamado assim em nossa sala" e depois vários dos meus colegas olhariam para mim e ririam.
"Tá tudo bem, vamos pensar em um jeito de resolver isso", minha amiga me assegurou quando passei pela porta da sala com nenhum ânimo para uma cara feliz, após explicar para as duas pessoas de minha confiança o que aconteceu, "Eles não vão ficar com seu diário por muito tempo. Só querem uma desculpa para arrumar confusão". Sempre achei engraçado algumas coisas sobre ela, mas ali, naquele tempo, essas mesmas coisas de sua identidade me acalmavam. Cheirinho de camomila, um sorriso amigável, olhos radiantes, era chegada ao calor, vestia roupas sempre claras e usava uma pulseira com sementes que pareciam coladas umas nas outras.
Tentei sorrir.
Experimentava alegria em ter eles comigo. Os três. Eram os únicos que me acompanhavam até em casa, ao menos até o meio da trajeto: havia um ponto em que percorríamos caminhos separados, eu no meu, os dois juntos em um segundo e o que faltara naquele dia em um terceiro sozinho. Ao lembrar dele e de seu rosto quase o tempo todo feliz, usando sempre roupas que cobriam seus braços e luvas, olhei para o garoto que andava até a saída do colégio conosco. A pele do menino era macia, seus olhos eram cinzas como um dia nublado (mas na maior parte do tempo ele usava um óculos de lentes escuras), evitava ficar exposto muito à luz solar, quase todas as meninas da turma tinham uma queda secreta por ele, ele era o melhor nadador da sala e também possuía um bom controle de voz.
"Você sabe onde... bom, onde ele foi?", perguntei ao meu amigo.
"Você fala daquele nosso guri?", vi seu sorriso pequeno e acho que toda vez que ele faz isso é para ocultar alguma outra mensagem: eu e minha amiga suspeitamos que ele secretamente é fã de eu e o outro... hã, juntos, "Ele falou algo ontem sobre ser um dia especial"
Eu o olhei. Ele, a pessoa na minha frente, tinha um hábito de algumas vezes falar sério uma mentira, uma tática que já vi boa porcentagem da sala cair, mas acreditei que não mentisse. Não sobre algo sério. E não com aquele sorrisinho.
"Dia especial?"
"É", meu amigo deu de ombros, "um dia especial. Parece que ele foi visitar a mãe dele hoje".
Foto: Lucie Fernandes
Fiquei com essa informação na minha mente enquanto falávamos. Tentei continuar a conversa, porém os dois logo mudaram de assunto. Falaram sobre o diário. Ela me atormentou divertida sobre o que conteria no diário e ele tentava adivinhar respostas para as questões. Muitas das vezes, eles conseguiam acertar, mas eu me sentia desconfortável, com a impressão de que eles eram caixas de segredos vivos e que seria quase desnecessário eles terem conhecimento do diário, e acabava não contando que eles acertavam.
Os desafios de perguntas e respostas duraram a metade do meu trajeto. Andamos quatro ruas juntos, pegamos um ônibus, paramos no centro da cidade, andávamos alguns metros, íamos para uma outra parada de ônibus e esperávamos ônibus diferentes. Até nesse último ponto de tempo do dia, a conversa fluiu como um falasse com o outro não em uma período de um dia, mas sim de anos, talvez até séculos. E então vinha a sensação de déja vu, sobre ter aquele tipo de conversa tantas e tantas vezes. "Faz muito tempo que não temos um papo assim", eles diziam algo nessas linhas nos momentos em que eu os interrogava. Não lembrava o porquê de estar tão certa que não era verdade. E não me recordava de como sumia minhas preocupações. Era como se, ficando próxima deles, eles possuíssem a habilidade de atrair, como ímãs humanos, sentimentos positivos.
Mas, em uma hora, eu enviava um aceno e um 'até logo' antes que eu partisse para o bairro do cemitério. Demorava muito tempo, então eu aproveitava para ler um livro e escutar alguma música calma pelo meu telefone. Era estranho eu tentar contar o tempo só ouvindo as canções. E era esquisito eu ter uma intuição quase certa quando chegaria a parada perto do cemitério, sem ao menos precisar olhar o ambiente pela janela.
Naquele dia, quando desci, percebi uma movimentação grande. Eu me aproximei lá de dentro. Tinha muito carro e tinha muita gente. Ouvia música dentro da igrejinha do cemitério. Perguntei do guarda o que houve e ele me contou que "uma senhora muito idosa morreu ontem e a família está fazendo as cerimônias para a enterrar hoje. Sabe, a dona Sabrina?". Dona Sabrina, lembrava-me bem, era uma senhora de cem e poucos anos que vinha durante certo dia do ano com seus filhos, irmãos e netos para rezar por um pouco pelo seu filho mais velho. Via ela desde que me mudei para a cidade. Mamãe já me contara "ela é bastante entristecida pela morte de seu filho. Ele era bem novo quando morreu. Sabe... Segundo o que me contaram, quando me convidaram para um chá na casa deles, tinha mais ou menos sua idade... Parece que ele morreu por causa de uma infecção, não se sabe de quê. Mas me disseram que era algo que comia o corpo dele", então eu já possuía uma ideia da razão de ela vir com tanta constância. Ainda com aquilo na memória e com a sensação do coração leve pelo papo com meus pais, eu me senti um pouco triste.
Queria não interromper o momento da família, então atravessei um atalho para chegar até a porta de casa. Mamãe me recebeu com pedaços de bolo e achocolatado quente. Contei para ela o que aconteceu na escola assim que deixei minhas coisas, lavei minhas mãos e fui lanchar. Contudo, sua expressão não exibia alguma surpresa. "Você tem certeza?", mamãe me perguntou, sem uma sombra de raiva ou irritação ou espanto em seu olhar, "Você não acha que você não deixou em algum lugar e  esqueceu?".
"Não, mãe", eu não dei muita atenção a vê-la, como me entretinha com o bolo e fechava meus olhos para pensar um pouco na minha vida, "Eu tenho certeza sim. Eu me lembro bem que levei o diário comigo. Sempre levo comigo para anotar alguma coisa. Qualquer coisa. E eu me lembro também de não ver mais o diário na bolsa..."
"Mas querida", mamãe me contou em um tom de voz de quem quer resolver um mal entendido, "eu achei o diário em cima de sua cama..."
Lembro-me de não conseguir acreditar ao ouvir aquilo. Pisquei os olhos umas três vezes.
Ao menos, até ver a prova com meus olhos minutos depois e me perguntar como meu diário parou sozinho ali.

FIM

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