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terça-feira, 29 de julho de 2014

[FEITO À MÃO] Coisas Dela - Camilla Gutierrez

 "Então é isso, estou indo embora" disse ela depois de amarrar bem as malas com todas as suas roupas, maquiagens, calcinhas, perfumes...Enfim, tudo o que cabe em dois anos de relacionamento. 
Ao mesmo tempo queria que ela ficasse, queria segurar sua mão e dizer que sentia muito, que o amor não se esgota assim, os filmes hollywoodianos não poderiam ter me enganado, no final há que se ficar com o beijo dos mocinhos. Será que eu não era mais mocinho, ou se tratava dela que, com um golpe de vilania, rompeu com a fragilidade do nosso amor? Eu queria fazê-la ficar. Nesses "momentos-limites" de nossa vida é que vemos o quão primatas ainda somos, e que não tem nada de sapiência em nossos genes; Eu queria agarrá-la como que prendendo-a contra o peito, sufocando-a, sim. Qualquer coisa poderia ser melhor do que aquela sensação de vazio que cismava em me agarrar cada vez que eu via ela pegando uma coisa ou outra da prateleira, colocando em uma de suas malas, e levando com ela, para Deus-sabe-onde.
Enquanto ela pegava suas coisas aos prantos e eu- apático- assistia à triste cena, um filme me veio a cabeça: Lembrei do primeiro dia que a vi. Foi um golpe de beleza bem diante dos meus olhos, nunca tinha visto pessoa tão branca: Lembro que esse detalhe tão peculiar me fez sorrir quando nos conhecemos. Os olhos, que carregavam tanto mistério, me prendiam como dois caleidoscópios, que diziam tanta coisa... Depende do ângulo e de quem os via. Lembrei também da vez em que ela saiu do banho nua e foi dançando pela casa, e depois voltou correndo pro banho alegando que o frio estava de rachar. Naquele momento eu sabia que era com ela que eu queria viver para sempre, com filhos ou não, pobres ou não, era ter ela e nada mais me faltaria, eu teria ela e tudo me bastava. Ri sozinho relembrando dessa cena e ela me olhou como que assassinando-me com o olhar:
 "Acha engraçado eu estar arrumando as minhas coisas e indo embora para sempre?"
"Eu só tava me lembrando daquele dia em que você saiu correndo do banho e dançou pela casa, voltou correndo devido ao frio..." eu disse, ainda esboçando um sorriso que sorria triste.
Ela me olhou profundamente, e sorriu também, sentando-se ao meu lado. Ela estava terrivelmente linda esse fim de tarde: Um vestido com flores miúdas, solto e leve, e um arco dourado que de tão fino, misturava-se quase que a cor de seu cabelo.
"É estranho pensar que as coisas acabaram entre nós."
"Sabe que não precisa ser assim...", e eu segurei sua mão. Foi um ato instantâneo, desesperado. Com aqueles olhos caleidoscópicos que me sugavam tão depressa, e a respiração tão perto da minha, quase que me incitando a pedi-la para ficar. Pela milésima vez só aquele final de tarde.
"Ao contrário, meu caro: As coisas PRECISAM ser assim. Estou cansada da minha infelicidade ao teu lado. Dos dias vazios, mórbidos, com um quê de tristeza. Tu achas bonito porque é poeta, mas eu não vivo de papel. Eu vivo de experiências, emoções. Eu não crio emoções para personagens, eu já tenho trabalho suficiente em cuidar das minhas próprias."
Sabia que ela não quis dizer o que disse.
  Ela era assim. Tínhamos que decifrá-la até na hora da raiva, em que ela não mede as palavras. É o tipo de pessoa que fala o que literalmente vem à cabeça, não existe um filtro de bom senso ou de compaixão pelos demais humanos que estariam ouvindo à coisas que aquela cabecinha maravilhosa -um tanto terrível- tramava. O que me desarmava era o remorso em seus pequeninos olhos, que logo apareceram e ela apertou os lábios, como que para se certificar que nenhuma barbárie sairia de dentro de si.
"Desculpe, eu..."
"Tudo bem. Eu conheço você... Não precisa se explicar para mim como costuma se explicar pro resto das pessoas que te cercam."
Ela sorriu um sorriso como que para suavizar o ambiente e a situação. Em seguida franziu o nariz e exclamou:
"Que trabalho!"
"Hã? Só para relembrar : Não estou nos teus pensamentos, por favor pare com essa mania chata de exclamar coisas sem sentido como se eu estivesse dentro do seu cérebro e já soubesse da sentença anterior que pensou", e ri em seguida. Ela fazia isso desde que nos conhecíamos, me cortava no meio de uma frase, exclamava do nada, gritava pela casa que tinha feito xixi no box do banheiro, como uma criança levada com seu bumbum rosado.
Ela ficou vermelha e sem graça. Detestava não fazer-se entender. Rapidamente tratou de complementar a frase solta:
"Eu estava pensando aqui, que trabalho vai dar conhecer outra pessoa e fazer com que ela entenda minhas exclamações, reticências, crises de riso, de choro, momentos de descontar raiva e coisas assim. Você me coloca no eixo e faz com que eu não pareça coisa maluca, você colocou ordem ao meu caos. Tentou, pelo menos, encontrar sentido e uma certa monotonia onde todos vêem um furacão de emoções. Você me conhece."
"Não foi tão complicado como você gosta de expor para os outros, você não é assim tão complicada... Acho que você gosta de se passar como complicada para manter o mistério. Igual naqueles filmes ruins que você adora fazer eu assistir, em que tem sempre uma moça solta, misteriosa, encantadora... Tem muito de você mesmo, nelas. Acho que você gosta de pensar que está fazendo o diabo com a cabeça de um certo sujeito como em um desses filmes ruins que você gosta."
Ela riu.
Achei que se sentiria envergonhada por eu tê-la deixado desnuda d'alma tão assim, sem uma certa cerimônia, de maneira brusca. Mas levantou a cabeça, altiva e um tanto peralta, brincou com os olhos em volta de mim, e por fim mordeu o lábio inferior fazendo um sorriso que faria qualquer sujeito, certamente, perder a cabeça e o juízo.
"Viu? É sobre isso que eu digo. Você sabe das coisas todas."
"Não. Eu sei das tuas coisas."
 Eu vi que uma lágrima quis brincar no canto do olho esquerdo. Lágrima essa que ela tratou de colocar pra dentro, uma vez que jamais admitiria que eu a visse chorar em um momento desses. Iria contra os princípios sem propósito dela: Não chorar em despedidas. Era um medo de se mostrar frágil, menina... Eu não compreendia. Tocá-la apenas no braço era emergir em sua fragilidade e meninice que ela tratava de esconder, apenas tocando-a no braço, imagine! Quando transávamos era como emergir em seu universo de flor. Sentir seus aromas, ter o desafio de querer tocar a pele toda de uma só vez, querendo unir-me com a alma também.
                Quanto ao que eu disse, sobre saber das coisas dela, não era nenhuma mentira. Desde que a conheci, apesar de meus esforços inúteis de tentar aplacar todo meu encanto com ela com uma ou outra moça, até bonitas e tudo...Era difícil não me lembrar dela. Às vezes eu ria no meio da aula do meu cursinho por ter lembrado de algo que ela disse. Pelas manias irritantes e ao mesmo tempo aquelas manias esquisitas, como o fato de responder "sim" para uma pergunta longa. Isso, sim. Sim e apenas sim. No nosso primeiro encontro foi assim, eu perguntava as coisas e ela dizia apenas 'sim'. Eu achei que ela estava debochando da minha cara, ou de alguma forma inconfortável com a minha presença. Mas ela era assim. E como eu ria das coisas dela. Tentei tanto tirá-la da cabeça, mas lá estava ela presente em cada risada que eu tinha com outras pessoas. Ela estava lá. Poderia sentir o gosto da língua dela na minha língua. E quando eu olhava pro mundo, eu olhava também através do que ela me ensinou, me mostrou, mesmo que sem querer.
"Certo. Acho que vou fazer um brigadeiro para nós."
Revirei os olhos.
"Achei que você fosse embora desesperadamente porque te faço infeliz", falei debochadamente.
"Posso ir embora desesperadamente com a barriga cheia, ou você quer que eu vá embora agora? Se quiser, tudo bem, eu entendo... Talvez você queira se acostumar com toda essa história de separação, etc e tal."
"Ora, pare de bobeira. Faça seu brigadeiro."
Ela é um desastre na cozinha e em qualquer outra tarefa doméstica. Eu sempre rio porque ela, ao 'tentar' cozinhar e passar de 'moça do lar', faz uma bagunça imensa na cozinha e suja tudo. Eu já previa um desastre de brigadeiro queimado, fogão sujo e louça até o teto.
 Ela cuidadosamente fez o brigadeiro.
Lavou tudo que usou para preparar o doce, como que para provar seu valor apenas mais uma vez antes de ir embora.
Comemos o brigadeiro, rimos.
Fomos ver um filme porcaria que ela gosta.
Ela dormiu nos meus braços, mas às vezes acordava em rompantes e balbuciava:
"Já tô indo embora, tá?"
 Sei.
Ri-me por dentro.
Mais um parto, mais uma quase-despedida, mais um dos dramas que ela cria e eu ligo e não ligo ao mesmo tempo. Vejo-a como um bebê querendo colo, carinho e com meu coração numa mão e uma faca imaginária na outra: Vez ou outra ela ameaça que vai embora e meu coração se encolhe como uma ameixa. Fico triste. Sei que não dá para levar o que ela fala a sério, apesar de ser uma mulher encantadora e risonha, é também um pouco maluca, portanto todo cuidado é pouco: Cuidar dela não era das tarefas mais fáceis.
A levei pra cama, tirei aquela calça jeans que provavelmente estava apertando sua barriga estufada devido aos brigadeiros, e a cobri pois já era noite naquele mês de agosto. Tratei de tirar as malas dela do meio da sala e colocá-las no quarto. Olhava-a me olhando de canto de olho vez ou outra, e ela esboçando um sorriso enquanto "dormia". É, eu sabia, ela não ia embora. Ainda teríamos alguns longos anos para desfrutarmos um do outro, ela dando uma de maluca querendo ir embora, e eu sem ouvir nada do que ela dizia. Éramos assim. Eu preferia não ouvi-la algumas vezes e ela adorava isso! Era como uma carta branca, para ela ser quem é sem que todas as palavras fossem levadas a ferro e fogo, mas eu já disse para ela não se preocupar: Das coisas dela eu sabia.
Me deitei ao lado dela e abracei-a ternamente.
Mais uma vez ela não iria embora e mais uma vez eu respirava o cheiro doce que vinha de seus cabelos.


Conheça mais sobre a autora acessando http://azulejandoceus.blogspot.com.br/

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