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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

[FEITO A MÃO] Nostalgia - Parte I

Créditos: http://blog.kevineikenberry.com/leadership-supervisory-skills/the-door-is-just-a-metaphor/

Como seria um lar?
 O humano Ernesto e, desconhecido para ele, o pequeno vampiro que adotou de uma história da coluna Feito a Mão do blog, “Antropofagia (I e II)”, voltam neste especial de Final de Ano. Desta vez, os meses e os dias se aproximando do aniversário de Jesus Cristo, o foco se volta ao segundo personagem, quem acompanha o rapaz em sua vida como Alexandre.


NOSTALGIA
I: Algumas declarações de Alexandre
Tudo não começou com a ideia de Ernesto de querer me pôr o nome de Alexandre na certidão de registro. No meio de um café da manhã simples antes de nós irmos sair para fazer isso em um cartório, eu disse que queria Nicolas ou Miguel. Eram nomes que eu considerava serem legais e ideais para alguém como eu, mas o residente me olhou bem, bem e disse com a cara séria “Não, você tem cara de Alexandre”. Passei dez minutos inteiros ali tentando o convencer a mudar de ideia até que, dentro do carro, ele veio com a justificativa que era um “nome de pessoas que vão ser grandes” e eu topei apenas por achar que ele estava me elogiando.
A decisão aconteceu uns quatro meses depois do real início dessa história: Nós nos encontramos pela primeira vez em uma rua escura que fica no caminho entre seu trabalho e sua casa, eu, uma criança de rua, e ele, um estagiário do Tribunal de Justiça do estado. Pela abordagem despreocupada em me alimentar em seu apartamento e a preocupação com as feridas causadas por brigas com outros moradores de rua e gangues, achei que ele fosse alguém malicioso, mas não, eu me enganei.
Sou uma criatura que deixou de ser mortal há duas décadas, mas tenho essa minha aparência de treze anos. Nasci como filho de uma prostituta com um homem de sangue nobre, ambos não querendo uma criança para atrapalhar seus planos, até uma mulher me acolher e me dar o presente da Imortalidade. É uma história que não costumo compartilhar, então eu peço para que seja mantida em sigilo entre você e eu. Ernesto não sabe disso. E não pretendo lembrar, como eu não sinto nostalgia pelos meus pais que me abandonaram e nem pela mulher que me iludiu. Enfim, sou um vampiro, o que pessoas como você costumam chamar, e eu já vi muitas coisas horríveis com meus olhos pra não ter muita esperança. Ernesto sabe isso? Não, seria muita coisa pra a cabeça dele absorver.
Depois de me ver enganado pela minha própria intuição, sendo alimentado e vestido com roupas novas, eu não me dei por vencido e inspecionei sua memória para ver se era uma boa pessoa. Não gosto muito de admitir, mas isso me fez ter mais simpatia pelo homem e querer continuar a morar ali. Depois de um mês com uma rotina juntos e conseguindo encaixar os horários dele, Ernesto me disse que a situação precisava ser avaliada para que eu pudesse ser inserido na família dele. Ele e o pai discutiram muito sobre a questão da adoção, como a ideia original era eu ser adotado por ele. Graças não foi o caso e o pai dele é quem me adotou, apesar de Ernesto ainda ter insistido em sua tão brilhante ideia e eu ter recusado por achar que seria muito estranho ele me declarar como seu próprio filho.

E embora eu esteja agradecido que eu acertara sobre ele ser uma boa pessoa – sim, eu ainda possuía minhas dúvidas –, que eu sinta muito pela morte de sua irmãzinha e de seu amigo, eu queria muito que ele me contasse pessoalmente o que ele pretendeu naquela noite, por quê eu com certeza aproveitaria para dizer:
— VOCÊ FICOU MALUCO?!
E em uma possibilidade de ele descobrir que eu, na verdade, estava nem morto e nem vivo, o que nunca vai acontecer pela minha boca:
— VOCÊ SABIA QUE EU QUERIA SEU SANGUE NAQUELE DIA E VOCÊ VEM COM ESSA DE QUERER SER ALIMENTO?!
Duas frases que eu nunca vou falar com essas intenções, é claro, mas eu não deixo de imaginar que ele precisa ouvir de alguém para parar de se martirizar tanto pelos outros e ser um pouco mais seguro de si. Por outro lado, Ernesto observou minha cara de mal-humorado no dia seguinte, assim que ele acordou em seus pijamas brancos. Ao contrário do que dizem os rumores, vampiros podem estar em estado de repouso, mas mantemos certa consciência. Havia dormido não, mas eu não estava com olheiras no momento em que ele proferiu “Você dormiu bem?”. Ele caminhou comigo até o lugar onde eu jazia antes, eu em minhas vestes já lavadas e passadas. Achei que ele ia me deixar sozinho, mas logo me deu então 100 reais, alguns doces, algumas vestes velhas, uma escova de dentes, uma pasta dental e um desodorante. Tudo se achava em uma bolsa velha. E Ernesto me falou que eu poderia passar em sua casa. Isso havia ocorrido por eu não ter insistido com ele e dito a ele que eu queria ir para a caixa de papelão, mas por orgulho.
— Bisteca voltou? — ouvi um rapaz que se estimava como novo dono da rua falar com um morador de rua — Achei que ele tinha ido com aquele homem para fazer alguma coisa.
— Agora que as coisas estavam bem... — um outro homem, dono de um bar, suspirou ao achar que minha vinda era más notícias.
— Graças a Deus que você voltou — um garoto de programa foi ao meu encontro com um sorriso nos lábios — Fico aliviado que você esteja aqui. O Raposa — era como chamavam o suposto dono da rua — estava já ditando novas regras. O único que conseguiria controlar ele era você ou o Jonny.
Eu não queria ser o dono da rua, mas, se eu quisesse ter certa comodidade no meio da violência, eu teria que derrotar os mais fortes pela sobrevivência. Infelizmente isso não se aplica a alguém com muitos homens ou com uma ampla influência financeira, fora as redes de tráfico de drogas e humanos, porém eu ser forte garantiu que as pessoas que vivem lá tivessem temor ao meu poder. Jonny, ou melhor, Jonas, era um rapaz que havia investido na carreira de luta livre até uma depressão o fazer desistir da carreira e então ele virar segurança. Não sei como se deu ele ter ido de segurança de evento para chegar no submundo, mas ele é uma pessoa com um compasso moral bem razoável e nós nos demos bem.
Falar com ele é o que se chama de legal. Ele sabia sobre eu ter perdido minha humanidade há muito tempo por acidente, ficou um tempo afastado e depois voltou para conversar. Quando eu voltei, eu não tinha tirado as memórias de Ernesto da cabeça e algo me falou que eu não havia desgostado dele. Um lar? Uma pessoa sem esperar algo em troca? Eu tinha sido surpreendido. Discorri, ainda entre duas ideias divergentes na cabeça, com Jonny sobre o que havia sucedido. Eu não tinha bebido sangue naquela noite para aquela manhã, mas eu aguentaria por um dia. Eu sobrevivi duas décadas nas ruas, tomando todo tipo de sangue. Doente, com drogas, de boa qualidade, comum, com álcool. Minha condição não me permitia adoentar.
— Você se simpatizou por aquele estudante — foi o que Jonas concluiu, bebericando seu pequeno copo de cerveja no balcão de um bar — Eu achei que ele iria correr perigo, sabendo da cota de pervertidos que você enganou só pra sugar o sangue.
— Bom, eu nunca ia deixar um tarado me tocar — bebi um copo de água, como raramente bebidas me desciam de verdade — Eu já sofri abuso demais na minha época pra ter paciência. Não tenho culpa se as pessoas se deixam enganar. Você se apresenta como uma ilusão e voilá, elas acreditam.
— Mas você se enganou — ele continuou muito baixo, apoiando o copo na mesa e seus olhos ponderativos em mim  — Você achou que o garoto, Ernesto como você o chamou, não era quem você viu nas memórias e totalmente diferente.
— Eu sei — resmunguei, não gostando de ser enganado pela minha intuição — Mas o cara é doido, não é pra nada. Não gosto de admitir, mas eu me interessei em falar com ele.
— Você quer o visitar? — houve uma curta pausa depois da pergunta dele, eu não sabendo o que dizer — Ou você pretendia ficar? Você tem problemas com abandono.
— Não fui abandonado — defendi — Ele tem vinte e tantos poucos anos. Não dá pra ele ser meu pai, cara, e nem tentar se fazer de tal. Fora que ele disse pra eu passar a noite ali depois do jantar.
— Isso não tira o fato que você se simpatizou por ele, rapaz.
— Ok, ok, eu me simpatizei por ele — bati no balcão, arrancando olhares de um batedor de bebidas e de alguns funcionários e clientes — Mas aí, como pensa em passar o Natal?
 — Ah, falta comprar o peru, comida e mais pessoas — Jonas disse e indicou uma transexual, com o braço tatuado de dragão — Ela falou que vai fazer uma ceia lá nos fundos do Belos & Belas. Vai ter um padre e um pastor que vão passar lá com a gente, segundo o que ela disse.
— E a sua família?
— Você sabe que meus pais moram em outra cidade. Penso em talvez passar tempo lá.
— Ah, você me contou umas vezes — tomei outro gole da água, engoli e voltei meu rosto a ele — Mas acho que tá fora de hora eles te ligarem?
— Não muda de assunto — Jonas falou — Você queria ficar ou visitar? Consigo ver uma coisa em seus olhos e acho que isso seria o desejo de ter uma casa.
— Eu tenho uma casa.
— Uma caixa de papelão não é bem um exemplo.
— Mas ainda é minha casa.
— Você sabe o que eu quis dizer — ele suspirou, por fim — Acho que seria uma boa você conversar com alguém fora desse meio. Você pode ter mais idade do que eu, mas não deixo de pensar que você chegou a perder a sua infância. Alguém de fora que seja bom seria um começo de ter mais alguém pra ser seu amigo.
“Amigo”. Foi com essa palavra que fui à casa de Ernesto. Não bati a porta e nem entrei à chave, eu tinha meu método de entrar sem precisar me apresentar. Demorou horas para que ele voltasse. Quando eu o vi diante de mim, impressionado com a fechadura funcionando e a janela aberta, alarguei involuntariamente um sorriso e então disse:
— Posso ficar por mais tempo?
Ernesto me fitou falando nada, sentou-se em uma cadeira e pensou.

FIM DA PRIMEIRA PARTE
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