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Como seria um lar?
O humano Ernesto e, desconhecido para ele, o
pequeno vampiro que adotou de uma história da coluna Feito a Mão do blog, “Antropofagia
(I e II)”, voltam neste especial de Final de Ano. Desta vez, os meses e os dias
se aproximando do aniversário de Jesus Cristo, o foco se volta ao segundo
personagem, quem acompanha o rapaz em sua vida como Alexandre.
NOSTALGIA
I:
Algumas declarações de Alexandre
Tudo
não começou com a ideia de Ernesto de
querer me pôr o nome de Alexandre na certidão de registro. No meio de um café
da manhã simples antes de nós irmos sair para fazer isso em um cartório, eu
disse que queria Nicolas ou Miguel. Eram nomes que eu considerava serem legais
e ideais para alguém como eu, mas o residente me olhou bem, bem e disse com a
cara séria “Não, você tem cara de Alexandre”. Passei dez minutos inteiros ali
tentando o convencer a mudar de ideia até que, dentro do carro, ele veio com a
justificativa que era um “nome de pessoas que vão ser grandes” e eu topei
apenas por achar que ele estava me elogiando.
A
decisão aconteceu uns quatro meses depois do real início dessa história: Nós
nos encontramos pela primeira vez em uma rua escura que fica no caminho entre
seu trabalho e sua casa, eu, uma criança de rua, e ele, um estagiário do
Tribunal de Justiça do estado. Pela abordagem despreocupada em me alimentar em
seu apartamento e a preocupação com as feridas causadas por brigas com outros
moradores de rua e gangues, achei que ele fosse alguém malicioso, mas não, eu
me enganei.
Sou
uma criatura que deixou de ser mortal há duas décadas, mas tenho essa minha
aparência de treze anos. Nasci como filho de uma prostituta com um homem de
sangue nobre, ambos não querendo uma criança para atrapalhar seus planos, até
uma mulher me acolher e me dar o presente da Imortalidade. É uma história que
não costumo compartilhar, então eu peço para que seja mantida em sigilo entre
você e eu. Ernesto não sabe disso. E não pretendo lembrar, como eu não sinto
nostalgia pelos meus pais que me abandonaram e nem pela mulher que me iludiu.
Enfim, sou um vampiro, o que pessoas como você costumam chamar, e eu já vi
muitas coisas horríveis com meus olhos pra não ter muita esperança. Ernesto
sabe isso? Não, seria muita coisa pra a cabeça dele absorver.
Depois
de me ver enganado pela minha própria intuição, sendo alimentado e vestido com
roupas novas, eu não me dei por vencido e inspecionei sua memória para ver se
era uma boa pessoa. Não gosto muito de admitir, mas isso me fez ter mais
simpatia pelo homem e querer continuar a morar ali. Depois de um mês com uma
rotina juntos e conseguindo encaixar os horários dele, Ernesto me disse que a
situação precisava ser avaliada para que eu pudesse ser inserido na família
dele. Ele e o pai discutiram muito sobre a questão da adoção, como a ideia
original era eu ser adotado por ele. Graças não foi o caso e o pai dele é quem
me adotou, apesar de Ernesto ainda ter insistido em sua tão brilhante ideia e
eu ter recusado por achar que seria muito estranho ele me declarar como seu
próprio filho.
E
embora eu esteja agradecido que eu acertara sobre ele ser uma boa pessoa – sim,
eu ainda possuía minhas dúvidas –, que eu sinta muito pela morte de sua
irmãzinha e de seu amigo, eu queria muito que ele me contasse pessoalmente o
que ele pretendeu naquela noite, por quê eu com certeza aproveitaria para
dizer:
—
VOCÊ FICOU MALUCO?!
E
em uma possibilidade de ele descobrir que eu, na verdade, estava nem morto e
nem vivo, o que nunca vai acontecer pela minha boca:
— VOCÊ SABIA QUE EU QUERIA SEU SANGUE NAQUELE
DIA E VOCÊ VEM COM ESSA DE QUERER SER ALIMENTO?!
Duas frases que eu nunca vou falar com essas
intenções, é claro, mas eu não deixo de imaginar que ele precisa ouvir de
alguém para parar de se martirizar tanto pelos outros e ser um pouco mais
seguro de si. Por outro lado, Ernesto observou minha cara de mal-humorado no
dia seguinte, assim que ele acordou em seus pijamas brancos. Ao contrário do
que dizem os rumores, vampiros podem estar em estado de repouso, mas mantemos
certa consciência. Havia dormido não, mas eu não estava com olheiras no momento
em que ele proferiu “Você dormiu bem?”. Ele caminhou comigo até o lugar onde eu
jazia antes, eu em minhas vestes já lavadas e passadas. Achei que ele ia me
deixar sozinho, mas logo me deu então 100 reais, alguns doces, algumas vestes
velhas, uma escova de dentes, uma pasta dental e um desodorante. Tudo se achava
em uma bolsa velha. E Ernesto me falou que eu poderia passar em sua casa. Isso
havia ocorrido por eu não ter insistido com ele e dito a ele que eu queria ir
para a caixa de papelão, mas por orgulho.
— Bisteca voltou? — ouvi um rapaz que se estimava
como novo dono da rua falar com um morador de rua — Achei que ele tinha ido com
aquele homem para fazer alguma coisa.
— Agora que as coisas estavam bem... — um outro
homem, dono de um bar, suspirou ao achar que minha vinda era más notícias.
— Graças a Deus que você voltou — um garoto de
programa foi ao meu encontro com um sorriso nos lábios — Fico aliviado que você
esteja aqui. O Raposa — era como chamavam o suposto dono da rua — estava já
ditando novas regras. O único que conseguiria controlar ele era você ou o
Jonny.
Eu não queria ser o dono da rua, mas, se eu
quisesse ter certa comodidade no meio da violência, eu teria que derrotar os
mais fortes pela sobrevivência. Infelizmente isso não se aplica a alguém com
muitos homens ou com uma ampla influência financeira, fora as redes de tráfico
de drogas e humanos, porém eu ser forte garantiu que as pessoas que vivem lá
tivessem temor ao meu poder. Jonny, ou melhor, Jonas, era um rapaz que havia
investido na carreira de luta livre até uma depressão o fazer desistir da
carreira e então ele virar segurança. Não sei como se deu ele ter ido de
segurança de evento para chegar no submundo, mas ele é uma pessoa com um
compasso moral bem razoável e nós nos demos bem.
Falar com ele é o que se chama de legal. Ele
sabia sobre eu ter perdido minha humanidade há muito tempo por acidente, ficou
um tempo afastado e depois voltou para conversar. Quando eu voltei, eu não
tinha tirado as memórias de Ernesto da cabeça e algo me falou que eu não havia
desgostado dele. Um lar? Uma pessoa sem esperar algo em troca? Eu tinha sido
surpreendido. Discorri, ainda entre duas ideias divergentes na cabeça, com
Jonny sobre o que havia sucedido. Eu não tinha bebido sangue naquela noite para
aquela manhã, mas eu aguentaria por um dia. Eu sobrevivi duas décadas nas ruas,
tomando todo tipo de sangue. Doente, com drogas, de boa qualidade, comum, com
álcool. Minha condição não me permitia adoentar.
— Você se simpatizou por aquele estudante — foi
o que Jonas concluiu, bebericando seu pequeno copo de cerveja no balcão de um
bar — Eu achei que ele iria correr perigo, sabendo da cota de pervertidos que
você enganou só pra sugar o sangue.
— Bom, eu nunca ia deixar um tarado me tocar —
bebi um copo de água, como raramente bebidas me desciam de verdade — Eu já
sofri abuso demais na minha época pra ter paciência. Não tenho culpa se as
pessoas se deixam enganar. Você se apresenta como uma ilusão e voilá, elas
acreditam.
— Mas você se enganou — ele continuou muito
baixo, apoiando o copo na mesa e seus olhos ponderativos em mim — Você achou que o garoto, Ernesto como você o
chamou, não era quem você viu nas memórias e totalmente diferente.
— Eu sei — resmunguei, não gostando de ser enganado
pela minha intuição — Mas o cara é doido, não é pra nada. Não gosto de admitir,
mas eu me interessei em falar com ele.
— Você quer o visitar? — houve uma curta pausa
depois da pergunta dele, eu não sabendo o que dizer — Ou você pretendia ficar?
Você tem problemas com abandono.
— Não fui abandonado — defendi — Ele tem vinte
e tantos poucos anos. Não dá pra ele ser meu pai, cara, e nem tentar se fazer
de tal. Fora que ele disse pra eu passar a noite ali depois do jantar.
— Isso não tira o fato que você se simpatizou
por ele, rapaz.
— Ok, ok, eu me simpatizei por ele — bati no
balcão, arrancando olhares de um batedor de bebidas e de alguns funcionários e
clientes — Mas aí, como pensa em passar o Natal?
— Ah,
falta comprar o peru, comida e mais pessoas — Jonas disse e indicou uma
transexual, com o braço tatuado de dragão — Ela falou que vai fazer uma ceia lá
nos fundos do Belos & Belas. Vai ter um padre e um pastor que vão passar lá
com a gente, segundo o que ela disse.
— E a sua família?
— Você sabe que meus pais moram em outra
cidade. Penso em talvez passar tempo lá.
— Ah, você me contou umas vezes — tomei outro
gole da água, engoli e voltei meu rosto a ele — Mas acho que tá fora de hora
eles te ligarem?
— Não muda de assunto — Jonas falou — Você
queria ficar ou visitar? Consigo ver uma coisa em seus olhos e acho que isso
seria o desejo de ter uma casa.
— Eu tenho uma casa.
— Uma caixa de papelão não é bem um exemplo.
— Mas ainda é minha casa.
— Você sabe o que eu quis dizer — ele suspirou,
por fim — Acho que seria uma boa você conversar com alguém fora desse meio.
Você pode ter mais idade do que eu, mas não deixo de pensar que você chegou a
perder a sua infância. Alguém de fora que seja bom seria um começo de ter mais
alguém pra ser seu amigo.
“Amigo”. Foi com essa palavra que fui à casa de
Ernesto. Não bati a porta e nem entrei à chave, eu tinha meu método de entrar
sem precisar me apresentar. Demorou horas para que ele voltasse. Quando eu o vi
diante de mim, impressionado com a fechadura funcionando e a janela aberta,
alarguei involuntariamente um sorriso e então disse:
— Posso ficar por mais tempo?
Ernesto me fitou falando nada, sentou-se em uma
cadeira e pensou.
FIM DA PRIMEIRA PARTE
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